Por Cezar Roberto Bitencourt

Cumprindo previsão constante no artigo 10 da Lei 13.254/2016, que instituiu a Regularização Cambial e Tributária (RERCT) de recursos, bens ou direitos de origem lícita a Receita Federal, por meio da Instrução Normativa RFB 1627, de 11 de março de 2016, errou ao restringir, injustificadamente, tal regularização a quem não “tiver sido condenado em ação penal cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do artigo 5º da Lei 13.254, de 2016, ainda que não transitada em julgado” (artigo 4º, § 3º).

Em outros termos, há um descompasso entre os limites estabelecidos pela lei a ser regulamentada e o próprio regulamento, ou seja, a instrução normativa exclui pessoas a que a própria lei atribui o direito de usar os benefícios nela assegurados. Com efeito, a lei criadora da RERCT garante a extinção da punibilidade dos crimes relacionados no § 1º de seu artigo 5º “se o cumprimento das condições se der antes do trânsito julgado da decisão criminal condenatória” (artigo 5º, § 2º, inciso II).

Ora, a contradição apontada é de uma clareza meridiana: a lei garante o direito à extinção da punibilidade a quem cumprir as condições exigidas antes do trânsito em julgado, enquanto a Instrução Normativa 1627 exclui do direito de optar pelo RERCT “quem tiver sido condenado em ação penal cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do artigo 5º da Lei 13.254, de 2016, ainda que não transitada em julgado”. Ou seja, para a instrução normativa da Receita Federal basta o contribuinte sofrer condenação em primeiro grau e já estaria impedido de optar pelo RERCT, ainda que não transitada em julgado. Para a lei, por sua vez, o contribuinte mesmo condenado por um daqueles crimes poderá optar pelo RERCT, desde que satisfaça as condições exigidas antes do trânsito em julgado da condenação. Trânsito em julgado é um instituto processual com conteúdo específico, significado próprio e conceito inquestionável, não admitindo alteração ou relativização de nenhuma natureza, e tampouco interpretação equivocada.

Há normas penais incriminadoras e não incriminadoras que são incompletas, e, consequentemente, precisam ser complementadas por outras normas (lei, decreto, regulamento, portaria, resolução etc.), sendo conhecidas, por isso mesmo, como normas penais em branco.

A Lei 13.254 não é necessariamente penal, embora se referida à matéria penal, mas necessita, igualmente, de regulamentação para ser aplicada, aliás, nesse particular, o próprio texto legal é explícito (artigo 10, I). Atendendo essa previsão legal a Receita Federal editou a Instrução Normativa referida. Contudo, a norma complementar não pode contrariar, ampliar ou restringir a lei complementada ou regulamentada. Há, inegavelmente, uma hierarquia entre esses diplomas legais, ainda que tivessem a mesma fonte legislativa, que não é o caso.

Na verdade, a norma complementar, independentemente de sua natureza, deve, necessariamente, respeitar os limites impostos pela norma regulamentada, especialmente quando a norma complementar for de natureza administrativa, tais como, decreto, regulamento, resolução, instrução normativa etc. Em outros termos, é indispensável que essa regulamentação ou integração ocorra nos parâmetros estabelecidos pela norma a ser regulamentada. A validez da norma complementar decorre da autorização concedida pela norma a ser regulamentada, como se fora uma espécie de mandato, devendo-se observar os seus estritos termos, cuja desobediência ofende o princípio da hierarquia dos diplomas legais de nosso sistema jurídico, tais como, leis federais, leis estaduais e leis municipais, ou lei complementar, lei ordinária, lei delegada etc. Diplomas legais aprovados pelo Congresso Nacional (leis) são superiores a decretos, resoluções, portarias ou qualquer outra normatização.

Em outros termos, nunca uma lei pode ser contrariada, alterada, revogada, ampliada ou restringida por qualquer outro instrumento normativo de categoria inferior, emitido por qualquer outra fonte legislativa diferente do Congresso Nacional.

Por isso, a limitação contida na Instrução normativa 1627/16 sucumbe à previsão contida na Lei 13.254, ou seja, aplica-se o disposto em seu artigo 5º, II, que estabelece o trânsito em julgado de decisão condenatória como limite para o contribuinte poder optar pelo RERCT.

Não acreditamos que essa contradição apresentada pela referida instrução normativa tenha sido intencional, mas, provavelmente, seja produto de uma análise apressada do novo texto legal. Como se trata de uma previsão inócua e, consequentemente, inaplicável, acreditamos que a Receita Federal reedite referida instrução normativa corrigindo seu texto, para adequá-lo aos termos da Lei 13.254/16, como medida de prudente responsabilidade.

Fonte: ConJur